domingo, 14 de agosto de 2011

«Lectio Divina» como escola de oração
entre os Padres do Deserto

Conferência ministrada por D. Armand Veilleux
no Centro Saint-Louis-des-Français,
Roma, Novembro 1995

A Escritura, escola de vida

vocação de Antão, como nos foi descrita por Atanásio em sua Vida de Antão, é bem conhecida. Certo dia o jovem Antão, que havia sido criado numa família cristã da Igreja de Alexandria (ou ao menos na região de Alexandria) e que havia portanto escutado as suas Escrituras serem lidas desde sua infância, entra numa igreja e é particularmente movido pelo texto da Escritura que ouve sendo lida: a história da vocação do jovem rico: «Se quiser ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e depois, segue-me; terás um tesouro nos céus» (Mt 19,21 Vit. Ant. 2).

Antão sem dúvida havia escutado este texto muitas vezes antes: mas naquele dia a mensagem o acerta com mais força, e recebe-a como um chamado pessoal. Responde, então ao chamado, vende a propriedade da família - que era bastante considerável - e distribui os lucros desta venda aos pobres do vilarejo, conservando só o suficiente para manter sua irmã mais nova por quem é responsável.

Pouco depois, ao entrar na igreja de novo, ouve outro texto do Evangelho que o afeta tanto quanto o primeiro: «Não vos preocupeis com o amanhã» (Mt 6,34: Vit. Ant. 3). Este texto também vai direto ao seu coração como um chamado pessoal. Confia, assim sua irmã a uma comunidade de virgens (tais comunidades existiam há muito), liberta-se de tudo o que fica com ele e assume uma vida ascética próximo à sua aldeia, sob a orientação dos ascetas da região.

Esta história mostra claramente a importância e o significado que a Escritura tinha entre os Padres do Deserto. Antes de tudo, era uma escola de vida. E porque era uma escola de vida, era também uma escola de oração para os homens e as mulheres que desejavam fazer de sua vida uma oração contínua, como a Escritura lhes pedia.

Os Padres do Deserto desejavam viver fielmente em suas vidas todos os preceitos da Escritura. E nelas o primeiro preceito concreto que encontraram sobre a freqüência de oração não era o de que deveriam rezar nesta ou naquela hora do dia ou da noite, mas que deveriam rezar sem cessar.

Atanásio escreve de Antão: (Vit. Ant. 3): «Ele trabalhava com suas mãos, tendo ouvido que quem é ocioso, não deve comer (2 Tes 3,10). E gastava o que ganhava em parte com pão, e em parte dando aos necessitados. Orava constantemente, uma vez que aprendera que é necessário rezar sem cessar em particular. Pois ele prestada uma atenção tão grande ao que era lido que nada lhe escapava da Escritura - conservava tudo e retinha na memória que ocupava o lugar de livros.»

Deve-se notar logo neste texto de Atanásio que a oração contínua é acompanhada de outras atividades, em particular do trabalho, e também a expressão de que ele (Antão) prestava muita atenção ao que era lido.

Obviamente não podemos falar da Escritura como uma escola de oração entre os Padres do Deserto sem nos referirmos a duas admiráveis Conferências que Cassiano dedicou explicitamente à oração, ambas atribuídas ao abade Isaac, a 9ª e a 10ª.

O princípio fundamental é dado desde o início da Conferência 9: «Todo o propósito do monge e da perfeição do coração consistem numa perseverança ininterrupta na oração.» E Isaac explica que todo o resto da vida monástica, a ascese e a prática das virtudes não tem sentido ou razão de ser a menos que conduza a tal fim.

O que significa «Lectio Divina»?

Antes de continuar, gostaria de tornar claro este ponto quando abordo a lectio divina entre os Padres do deserto. Não entendo a expressão lectio divina no sentido técnico (reduzido) que lhe foi dado na literatura espiritual e monástica destas últimas décadas.

A palavra latina lectio em sua primeira acepção significa ensinamento, uma lição. Num segundo sentido, derivado, lectio também pode significar um texto ou um grupo de textos que transmitem tal ensinamento. Assim falamos de lições (lectiones) da Escritura lidas na liturgia. Finalmente, num sentido posterior e mais ainda derivado, lectio pode também significar leitura.

Este último sentido é obviamente aquele no qual esta expressão é entendida hoje. Em nossos dias, de fato, lectio divina é mencionada como uma observância específica; e nos dizem que é uma forma de leitura diferente de todas as outras, e que acima de tudo não devemos confundir a verdadeira lectio divina com outras formas de simples «leitura espiritual.» Esta é uma visão completamente moderna, e como tal, representa um conceito estranho aos Padres do Deserto, e ao qual eu devo retornar no momento presente.

Se consultamos a literatura latina primitiva inteira (o que pode facilmente ser feito em nossos dias, quer por meio de boas concordâncias, quer por CDRoms do CETEDOC), vemos que cada vez que encontramos a expressão lectio divina entre os escritores latinos antes da Idade Média, esta expressão significa a própria Sagrada Escritura, e não uma atividade humana sobre a Sagrada Escritura. Lectio divina é sinônima de sacra pagina. Assim somos informados de que a lectio divina nos ensina tais e tais coisas: que devemos escutar com atenção a lectio divina, que o Divino Mestre, na lectio divina, nos lembra de tal e tal outra exigência etc.

Exemplos:

Cipriano: «Sit in manibus divina lectio» (De zelo et livore, cap. 16)

Ambrósio: «ut divinae lectionis exemplo utamur» (De bono mortis, cap. 1, par. 2)

Agostinho: «aliter invenerit in lectione divina» (Enarr. in psalmos, ps. 36, serm.3, par.1)

Este é o único sentido da expressão lectio divina durante o período dos Padres do Deserto. É este pois o sentido no qual eu vou usá-la nesta conferência, exceto quando faço alusão à abordagem contemporânea. Não devo falar de uma observância particular tendo a Escritura como seu objeto, mas da própria Escritura como Escola de vida e portanto, Escola de oração dos primeiros monges.

Leitura?

Falar de «leitura» da Escritura entre os Padres nos leva, além disto, à confusão. A leitura tal como a entendemos hoje deve ter sido de fato muito rara. Os monges de Pacômio, por exemplo, na sua maioria vindos do paganismo, eram obrigados, à sua chegada ao mosteiro, a aprender a ler se eles já não o soubessem fazer, de tal modo a serem capazes de aprender as Escrituras. Um texto da regra diz que não deve haver ninguém no mosteiro que não saiba de cor ao menos o Novo Testamento e os Salmos. Mas uma vez memorizados, estes textos tornam-se o objeto de um «meletè», uma meditatio ou ruminatio contínua o dia todo e por uma grande parte da noite, tanto em particular quanto na oração comum. Esta ruminatio da Escritura não é entendida como oração vocal, mas mais como um constante contato com Deus através de sua Palavra. Uma atenção constante, que em si mesma se torna uma oração constante.

Uma história dos apoftegmas mostra claramente esta importância relativa da leitura comparada com a importância absoluta dos conteúdos da Escritura:

«Numa época de frio intenso, Serapião encontra em Alexandria um pobre homem completamente nu. Diz a si mesmo: 'Este é o Cristo, e eu sou um assassino se ele morrer sem eu ter tentado ajudá-lo'. Então Serapião tira todas as suas roupas e as dá ao pobre homem, e fica nu na rua com a única coisa que lhe sobrou, um Evangelho debaixo do braço... Um passante, que o conhece, lhe pergunta: 'Abba Serapião, quem lhe levou suas roupas?' E Serapião, mostrando seu Evangelho, replica: 'Este é aquele que me levou as roupas'. Serapião então vai a um outro lugar e lá vê alguém que está sendo levado à prisão, pois é incapaz de pagar sua dívida. Quando Serapião retorna à sua cela, sem dúvida tremendo, seu discípulo lhe pergunta onde está sua túnica, e Serapião replica que ele a deu para onde era mais necessária do que sobre seu corpo. À segunda questão do discípulo: 'E onde está seu Evangelho?' Serapião responde: Eu vendi aquele que continuamente me dizia: Vendei vossos bens e dai-os aos pobres (lc 12,33): eu dei ao pobre para que eu tenha maior confiança no dia de juízo'» (Pat Arm. 13, 8, R: III, 189)

Como vimos no início, Antão, um cristão de nascimento, foi convertido à vida ascética pela lectio divina, ou a sacra pagina, proclamada na comunidade eclesial local, durante a celebração da liturgia.

Pacômio, que, pelo contrário, vinha de uma família pagão do Alto Egito, foi também convertido pela Escritura, mas pela Escritura interpretada e encarnada na vida concreta de uma comunidade cristã que viva o Evangelho, aquela de Latopolis. Vocês conhecem a história: O jovem Pacômio estava prestando o serviço militar no exército romano e foi enviado num navio que levou-o com outros recrutas a Alexandria. Uma noite, o navio parou em Latopolis e como os recrutas foram postos na prisão, os cristãos do lutar trouxeram comida e bebida aos prisioneiros. Este foi para Pacômio o primeiro encontro com o Cristianismo.

Para Antão, representante por excelência da vida anacorética, como para Pacômio, representante da vida cenobítica, a Escritura é acima de tudo uma Regra de vida. É mesmo a única verdadeira Regra do monge. Nem Antão nem Pacômio escreveram uma Regra no sentido em que seria entendida na tradição monástica que os seguiu, embora um certo número de regras práticas de Pacômio e de seus sucessores tenha sido reunido sob o nome de «Regra de Pacômio».

A Escritura como a única «Regra» do monge

Para um grupo de irmãos que pedia a Antão uma «palavra», ele respondia: «Vocês escutaram as Escrituras? Elas lhe farão muito bem». (Notar a palavra: «escutaram» - ékousate) (Ant. 19)

Alguém perguntou a Antão: «O que devo fazer para agradar a Deus?» O ancião replicou: «Preste atenção àquilo que lhe recomendo: onde quer que vás, sempre tenha Deus ante teus olhos; o que quer que faças, faze-o de acordo com o testemunho das Escrituras.» (Ant. 3).

Há ao menos três coisas para tomar nota neste breve apoftegma. Primeiro, o monge que pergunta a Antão não está buscando um ensinamento teórico ou abstrato. Seu pedido, como o do jovem rico do Evangelho, é muito concreto: «O que devo fazer?» —«O que devo fazer para agradar a Deus?» (Esta é ademais uma atitude encontrada constantemente nos apoftegmas). A resposta de Antão é dupla. Agrada-se a Deus se Deus está sempre ante seus olhos, isto é, se se vive constantemente na presença de Deus - que é o conceito que os Padres do Deserto tinham de oração contínua; e isto é possível somente se se permite ser guiado pelas Escrituras. Antão não está falando aqui de leitura ou de meditação sobre as Escrituras, mas de verdadeiramente fazer tudo de acordo com o testemunho das Escrituras.

Certo dia, Teodoro, o discípulo favorito de Pacômio, perguntou a este, com o fervor de neófito, quantos dias se deveria ficar sem comer durante a Páscoa, isto é, durante a Semana Santa. (A regra da Igreja e o costume geral era de observar um jejum completo durante a Sexta Feira Santa e o Sábado Santo; mas havia os que ficavam três ou quatro dias sem comer). Pacômio recomendou-lhe seguir a Regra da Igreja, que pedia um jejum total somente durante dois dias, com vistas a, dizia ele, ter a força de fazer sem enfraquecer as coisas que lhe eram mandadas nas Escrituras: oração sem cessar, vigílias, recitar a lei de Deus e o trabalho manual.

O que é sobretudo importante para os Padres do Deserto não é ler a Bíblia, mas vivê-la. Obviamente, para vivê-la, é preciso conhecê-la. E como todos os cristãos, o monge aprendeu as Escrituras em primeiro lugar por ouvi-las proclamadas na assembléia litúrgica. Ele também aprendeu de cor as partes importantes da Escritura para ser capaz de ruminá-las o dia todo. Finalmente, alguns tiveram acesso aos manuscritos das Escrituras e foram capazes de lê-los em particular. Esta leitura em particular era apenas uma forma dentre outras, e não necessariamente a mais importante, de permitir-se ser constantemente desafiado pela palavra de Deus.

A hermenêutica do «deserto»

As poucas narrativas que mencionei nos dão um vislumbre das linhas de força do que poderia ser chamado a hermenêutica dos Padres do Deserto - hermenêutica que certamente nunca é expressa em forma de princípios abstratos, mas que são ainda assim hermenêutica. Os grandes mestres da hermenêutica moderna, que consideram toda interpretação como um diálogo entre o texto e o leitor ou o ouvinte, e para quem toda interpretação deveria normalmente conduzir a uma transformação ou a uma conversão, nada inventaram. Deram expressão a uma realidade que os Padres do Deserto viviam, certamente sem ser capazes de formulá-la - ou de qualquer forma, sem se preocuparem em formulá-la.

No deserto, a Escritura estava constantemente sendo interpretada. Esta interpretação não é expressa sob a forma de comentários e homilias, mas em ações e gestos, numa vida de santidade transformada pelo diálogo constante do monge com as Escrituras. Os textos não cessam de ser mais e mais significativos não só para aqueles que os lêem e os ouvem, mas também para aqueles que encontram estes monges que encarnaram estes textos em suas vidas. O homem de Deus que assimilou a Palavra de Deus se tornou um novo «texto», um novo objeto de interpretação. Além disto, é neste contexto que deveríamos compreender o fato de que no deserto a palavra do Ancião é considerada com o mesmo poder que a Palavra da Escritura.

Mencionei acima o apoftegma de Antão quando respondia aos irmãos: «Vocês ouviram as Escrituras? Elas lhes farão muito bem.» De fato, os irmãos não se satisfizeram com esta resposta e lhe disseram: «Pai, desejamos também uma palavra sua.» Então Antão lhes disse: «O Evangelho diz: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda». Eles disseram: «Não podemos fazer isto.» O ancião disse-lhes: «Se não podem oferecer o outro lado, ao menos deixem-no bater num lado.» - «Nem mesmo isto podemos fazer.» — «Se não podem fazer nem mesmo isto», disse-lhes ele, «não devolvam o mal que receberam.» E eles disseram: «Não podemos fazer isto tampouco.» Então o ancião disse ao seu discípulo: «Prepare um pouco de caldo de trigo para eles, pois estão doentes. Se não podem fazer isto, e não podem fazer aquilo, o que posso eu fazer por vocês? Vocês tem necessidade de orações.»

Filhos da Igreja do Egito e de Alexandria

Esta maneira de entender a Escritura como Regra de vida não era, entretanto, peculiar dos monges. Não devemos esquecer que os Padres do deserto que nos são conhecidos pelos Apoftegmas, a literatura pacomiana, Paládio e Casiano, etc., são antes de tudo monges egípcios do final do século terceiro e início do século quarto. Estes monges são filhos da Igreja. Pertencem a uma Igreja específica, a do Egito, formada na tradição espiritual de Alexandria.

O mito de acordo com o qual a maioria dos primeiros monges, começando por Antão, era iletrada e ignorante, não é sustentado pela pesquisa científica. Muitos estudos recentes, particularmente os de Samuel Rubenson sobre as Cartas de Antão, mostraram que Antão e os primeiros monges do Deserto do Egito assimilaram o ensinamento espiritual da Igreja de Alexandria, que era profundamente marcada pelo ensinamento dos grandes mestres da Escola de Alexandria e, em particular, pela inspiração mística dada pelo seu mais ilustre mestre, o grande Orígenes.

A Igreja de Alexandria nasceu da primeira geração do Cristianismo no coração de uma diáspora judaica altamente educada que contava, de acordo com Plínio, cerca de um milhão de membros: isto explica o fato de que esta Igreja de Alexandria e do Egito tiveram desde o início uma orientação judaico-cristão muito marcante. Explica também sua abertura à tradição escriturística e mística que marcaram as Igrejas judeo-cristãs das primeiras gerações de cristãos.

A Escola do Deserto é, sob muitos pontos de vista, a réplica em solidão da Escola de Alexandria onde sabemos que Orígenes viveu com seus discípulos uma forma de vida monástica completamente centrada sobre a Palavra de Deus. De acordo com a bela descrição de Jerônimo, esta vida foi uma alternância contínua entre oração e leitura, leitura e oração, noite e dia (Carta a Marcella 43, 1; PL 22:478: Hoc diebus egisse et noctibus, ut et lectio orationem exciperet, et oratio lectionem.)

Nem era isto exclusivo do Egito. Quase ao mesmo tempo, Cipriano de Cartago formulava uma regra que seria depois reproduzida por quase todos os Padres Latinos: «Rezai assiduamente ou lede assiduamente; por vezes falai a Deus, noutras vezes, escutai a Deus falando a vós» (carta 1,15; PL 4:221 B: Sit tibi vel oratio assidua vel lectio: nunc cum Deo loquere, nunc Deus tecum - que se tornou a fórmula clássica: «quando rezais, vós falais com Deus; quando ledes, Deus fala convosco.»)

Se todos os monges egípcios não eram Evágrio, e se uns poucos deles devem ter lido Orígenes no texto, o fato é que eles foram formados para a espiritualidade cristã pelo ensinamento de pastores que permaneceram fortemente influenciados pela orientação que Orígenes dera à Igreja de Alexandria através da Escola que dirigira ali por muitos anos.

Isto é o que explica a sólida espiritualidade bíblica do monaquismo primitivo. Pode-se objetar imediatamente que as citações bíblicas são, quando tudo está dito e feito, relativamente poucas nos Apoftegmas, mesmo se elas são muito mais freqüentes na literatura pacomiana. A resposta é que a Escritura modelou de tal modo o modo de vida destes ascetas que seria supérfluo citar-lhe as passagens. O monge pneumatophoros era aquele que, vivendo de acordo com as Escrituras, estava cheio do mesmo Espírito que inspirara as Escrituras. (Estavam longe então do costume moderno que exige que nenhum enunciado nenhum ensinamento seja levado a sério a menos que seja embelezado com uma nota de rodapé indicando todas as pessoas que tinham dito a mesma coisa antes de nós).

A tradição do que agora é chamado de lectio divina, isto é, o desejo de permitir-se ser desafiado e transformado pelo fogo da Palavra de Deus, não seria compreendido sem sua dependência, para além do monaquismo primitivo, da tradição do ascetismo cristão dos três primeiros séculos, e mesmo de suas raízes na tradição de Israel.

Da catequese recebida na sua Igreja local, o monge aprendeu que foi criado à imagem de Deus, que esta imagem foi deformada pelo pecado e que precisa ser reformada. Para isso, precisa deixar-se ser transformado e remodelado à imagem do Cristo. Pela ação do Espírito Santo e sua vida de acordo com o Evangelho, sua semelhança com o Cristo é gradualmente restaurada e ele é capaz de conhecer a Deus.

Vemos que o objetivo da vida do monge, como expresso por Cassiano, é a oração contínua, que ele descreve como uma consciência constante da presença de Deus, realizada através da pureza do coração. Não é adquirida através desta ou daquela observância, nem mesmo através da leitura ou meditação sobre a Escritura, mas através de deixar-se ser transformado pela Escritura.

O contato com a Palavra de Deus - não importa se o contato se dá através da leitura litúrgica da Palavra, do ensinamento de um pai espiritual, da leitura em particular de um texto ou da simples ruminação de um versículo ou de algumas palavras aprendidas de cor - este contato é o ponto de partida para um diálogo com Deus. Este diálogo é estabelecido e prosseguido na medida que o monge atingiu certa pureza de coração, uma simplicidade de coração e de intenção, e também na medida que ele colocou em prática os meios de chegar a esta pureza do coração e de mantê-la. Este diálogo, no decurso do qual a Palavra incessantemente desafia o monge à conversão, sustenta esta contínua atenção a Deus, que os Padres consideravam como oração contínua, e que é o objetivo de sua vida.

Para os monges do Deserto, a leitura da Palavra de Deus não é simplesmente um exercício religioso de lectio que gradualmente prepara o espírito e coração para a meditatio e depois para a oratio, na esperança que possam mesmo chegar à contemplatio (... se possível antes que a meia hora ou a hora de lectio termine). Para os monges do deserto, o contato com a Palavra é contato com o fogo que queima, perturba, chama violentamente à conversão. O contato com a Escritura não é para eles um método de oração; é um encontro místico. E este encontro freqüentemente os torna temerosos, mas ao mesmo tempo os faz conscientes de suas exigências.

Círculo hermenêutico

A Escritura toma constantemente um novo sentido, cada vez que a lemos Aqui de novo, a hermenêutica moderna concorre com as intuições dos Padres do Deserto. Estes teriam se identificado com o enunciado de Agostinho: «Ontem entendeste um pouco, hoje entendes mais; amanhã entenderás ainda mais: a própria luz de Deus se torna mais forte em ti» (In Joh. Tract. 14,5, CCL 36, p. 144, linhas 34-36).

Para os monges do deserto, as palavras da Escritura (como também, na verdade, as palavras dos Antigos), transcendiam a dimensão limitada do «acontecimento» no qual estas palavras eram encontradas pela primeira vez e nas quais seu significado era discernido. Estas «palavras» projetavam um «universo de significado» no qual tentavam entrar. O apelo a vender tudo, a dar os ganhos com esta venda aos pobres, a seguir o Evangelho (Mt 19,21), a exortação a nunca deixar que o sol se ponha sobre a ira (Ef 4,25), o mandamento do amor: todos estes textos formavam a vida dos Padres do Deserto de um modo particular e projetavam um «universo de significado» no qual eles se esforçavam para entrar, que eles se esforçavam para torná-lo seu próprio. A santidade no deserto consistia em dar uma forma concreta a este universo de possibilidades que fluíam dos textos sagrados, em interpretá-los e torná-los uma realidade da vida cotidiana.

O Abba Nesteros (cf. Conferência 14 de Cassiano), nos diz que «nós temos de ter o zelo de aprender de cor as Escrituras Sagradas em sua ordem, e voltar a elas sem cessar em nossa memória. Esta meditação contínua, diz ele, produzirá em nós um duplo fruto.» Primeiramente, nos preservará dos maus pensamentos. Depois, esta recitação ou meditação contínua nos levará a uma compreensão sempre renovada. E Nesteros tem uma belíssima sentença: «Na medida em que nosso espírito for renovado por este estudo, as Escrituras também começam a assumir uma nova face (scripturarum facies incipiet innovari). Um entendimento mais misterioso nos é dado, cuja beleza cresce com nosso progresso.» (De novo, achamos esta ligação indissolúvel entre colocar as Escrituras em prática e a capacidade de compreendê-las num nível mais profundo).

Podemos uma vez mais comparar esta visão com a abordagem moderna de um Ricoeur, por exemplo, que diz que uma vez que um texto saiu das mãos de seu autor, adquire uma existência própria, e assume um novo sentido a cada vez que é lido - cada leitura é uma interpretação, que é uma revelação de uma das quase infinitas possibilidades contidas no texto.

De acordo com o método moderno de lectio divina, deve-se ler lentamente e parar num versículo o tempo suficiente para nutrir o coração ou o espírito, se não as emoções, e passar ao versículo seguinte quando os sentimentos tiverem esfriado ou quando se perdeu a atenção. Os primeiros monges, por sua parte, ficavam com um versículo até que eles o tivessem posto em prática.

Alguém vem ao Abba Pambo lhe pedir para ensinar-lhe um salmo. Pambo começa a ensinar-lhe o salmo 38: mas mal pronunciou o primeiro versículo: «Eu disse: 'Vigiarei meus caminhos, para não pecar com minha língua...'» o irmão não deseja ouvir mais nada. Diz a Pambo: «este versículo é suficiente para mim; possa agradar a Deus que eu tenha a força de aprender isto e colocá-lo em prática.» Dezenove anos depois, ele ainda estava tentando. (Arm 19, 23 Aa; IV 163).

Da mesma forma, alguém pede ao Abba Abraão, que era um excelente escriba assim como homem de oração, para copiar o salmo 33. Ele copiou só o versículo 15: «Afasta-te do mal e faze o bem; procura a paz e segue-a», dizendo ao irmão: «Ponha isto em prática primeiro, e então escreverei o resto...» (Arm 10, 67: III , 41)

A Bíblia, para os Padres, não era algo que se conheça com o intelecto, ou mesmo com o coração, como gostamos de dizer nos dias de hoje (muitas vezes, entretanto, confundindo o conceito bíblico de coração com uma noção de «coração mais recente e um tanto sentimental» Para os Padres, pode-se conhecer a Bíblia assimilando-a ao ponto de traduzi-la na vida. Todo outro conhecimento que não leva a isto é inútil.

Compreender a Escritura

Mas isto não quer dizer que não devamos nos aproximar da Escritura também com o intelecto. Os monges estavam preocupados em entender o sentido literal da Escritura antes de aplicá-lo a si mesmos. Nos mosteiros pacomianos, por exemplo, havia cada semana três catequeses durante as quais o superior do mosteiro ou o superior da casa interpretariam a Escritura durante a sinaxe, depois da qual os irmãos discutiriam entre si o que eles haviam entendido, para se assegurar que todos haviam entendido corretamente.

A interpretação de um texto difícil pede um esforço do intelecto; mas este esforço seria inútil sem a luz divina, que deve ser pedida na oração. Neste sentido a oração deve preceder a lectio assim como ser seu fruto. Quando dois irmãos perguntaram a Antão sobre o significado de um texto difícil do Livro do Levítico, Antão lhes pediu que esperassem algum tempo, enquanto foi rezar, pedindo a Deus que lhe enviasse Moisés a ele para ensinar-lhe o sentido do texto (Arm 12, 1B; II, 148). Antes dele, Orígenes havia feito o mesmo, pedindo a seus discípulos que rezassem com ele para obter a compreensão de um texto sagrado particularmente difícil, para achar «a edificação espiritual» contida no texto, segundo suas palavras (L. Doutreleau, Origène. Homélies sur la Genèse. Trad. et notes - SC 7, Paris 1943, Hom 2,3, p. 96). (Note a expressão «contida no texto». O sentido espiritual da Escritura não é algo artificial acrescentado a ela; mas algo contido no texto, que precisa ser descoberto).

Da mesma maneira, um grande monge, Isaac de Nínive, escreveu: «Não se aproxime, portanto, das palavras da Escritura, cheias de mistério, sem oração... diga a Deus: 'Senhor, faze-me perceber a força que deve ser aqui encontrada.' » (Ver J. Wensik, Mystic Treatise by Isaac of Nineveh (Amsterdam, 1923), par. 329, cap. XLV, p. 220). O que buscamos num texto não é um sentido abstrato, imaterial, é um poder capaz de transformar o leitor.

As teorias modernas sobre a lectio divina geralmente insistem sobre o fato de que a lectio é algo completamente diferente de um estudo. Os Padres certamente não teriam compreendido esta distinção e esta divisão em compartimentos separados. Sua abordagem da Escritura era unificada. Todo esforço de aprender a Escritura, de compreendê-la, de pô-la em prática, era simplesmente um esforço de entrar num diálogo com Deus e permitir-se ser transformado por ele neste diálogo que se tornou uma oração contínua. Nem eles, nem Orígenes, nem sobretudo Jerônimo, para o qual a ignorância das Escrituras era ignorância de Cristo (In Esaiam, Prol. CCL 73,2; CCL 78, 66), teriam entendido um estudo da Escritura que não fosse um encontro pessoal com o Deus vivo.

Para Jerônimo, a oração reside não primariamente no coração mas no intelecto do qual vai ao coração. É necessário conhecer a Deus primeiro para amá-lo. Aquele que o conhece de verdade não deixa de amá-lo. Daí a importância do estudo em profundidade e a compreensão das Escrituras com o intelecto.

De Marcella, que mais do que todos os outros discípulos de Jerônimo tinha estudado as Escrituras em profundidade e lido-as assiduamente, dizia ele: «Ela entendeu que a meditação não consiste em repetir os textos da Escritura... pois ela sabia que ela só mereceria compreender as Escrituras quando tivesse traduzido os mandamentos em vida» (Ep. 127,4; CSEL 56, 148).

Na sua Conferência 14, Cassiano, como bom porta-voz da espiritualidade dos desertos do Egito onde viveu pro vários anos na mesma época de Evágrio, distingue duas formas de ciência, practikè e theoretikè, esta última sendo a contemplação das coisas divina e a compreensão dos significados mais sagrados. Esta theoretikè, ou contemplação das coisas divinas, ele também denomina «a verdadeira ciência das Escrituras», que ele divide em duas partes, a interpretação histórica e a compreensão espiritual. Tanto uma quanto a outra pertencem à contemplação.

Cassiano acrescenta: «Se você deseja alcançar a verdadeira ciência das Escrituras, apresse-se primeiro para adquirir uma inabalável humildade de coração. É isto que o conduzirá, não a ciência que ensoberbece, mas aquela que ilumina, pela consumação da caridade.» Então, o que decide se o estudo da Escritura é uma atividade contemplativa ou não, não é o método de leitura ou de interpretação usado, mas a atitude do coração.

Pré-compreensão

A hermenêutica de Ricoeur nos ensina que quando se lê um autor antigo não se entra tanto nas relações com o pensamento do autor mas na própria realidade da qual o autor está falando. Este é o motivo pelo qual não existe compreensão possível de um texto sem uma pré-compreensão que consiste numa certa relação já existente entre o leitor e a realidade da qual o texto está falando. Encontra-se já uma intuição semelhante em Cassiano ao final de sua décima Conferência. Isaac, depois de ter explicado os meios de chegar à oração pura, acrescenta: «Trazido à vida por este alimento (o das Escrituras) do qual ele não cessa de se nutrir, penetra ao ponto de todos os sentimentos expressos nos salmos, que ele recita doravante não como se tivessem sido compostos pelo profeta, mas como se ele próprio fosse o autor, e como uma oração pessoal...» E acrescenta: «Isto é de fato o que as divinas Escrituras nos revelam mais claramente, e é seu coração e de algum modo sua medula que nos é mostrada, quando nossa experiência não só nos permite conhecer, mas possibilita que nós antecipemos o próprio conhecimento, e o sentido das palavras se faz conhecido para nós, não por alguma explicação, mas pela prova de que nós mesmos fazemos delas» (Conf. X, 11)... «Instruídos pelo que nós mesmos sentimos, as coisas que aprendemos por ouvir dizer não são convenientes para nós mas nós examinamos a realidade nelas para penetrar suas profundezas: em absoluto elas têm o efeito de terem sido confiadas à nossa memória, mas nós as fazemos nascer na profundeza do nosso coração, como sentimentos naturais que são parte de nosso ser; não é a leitura que nos faz penetrar o sentido das palavras, mas a experiência que adquirimos.» (ibid.)

Não há entendimento nem interpretação sem um pré-entendimento. Deste ponto de vista, é claro que a vida que os monges levavam no deserto, uma vida inteiramente de silêncio, solidão e ascetismo, constituíam um pré-entendimento que, numa grande extensão, condicionou seu entendimento da Escritura. O silêncio e a pureza de coração foram vistos como pré-condições para o entendimento e a interpretação das Escrituras em seu sentido pleno.

Só se pode entender o que já se vive, ao menos até certo ponto. Este é o motivo pelo qual São Jerônimo assinala uma ordem na qual aprender a Escritura: primeiro, o Saltério, depois os Provérbios de Salomão e o Coelet, e depois o Novo Testamento. E é só quando a alma tiver sido preparada longamente através de um longo relacionamento de intimidade amorosa com Cristo que poderá aproximar-se com fruto do Cântico dos Cânticos.

Palavras dos Anciãos

Os Padres do Deserto por vezes respondiam a uma questão colocada a eles com a palavra da Escritura, mas também respondiam com outras palavras, à qual seus ouvintes davam praticamente a mesma importância. Estavam convencidos de que o poder destas palavras vinha da grande pureza de vida dos santos homens que as proferiam, pois ele próprio tinha sido transformado pela Escritura.

A noção moderna de «lectio divina»

Gostaria, agora, de trazer algumas reflexões sobre a concepção que hoje se tem da lectio divina, à luz do ensinamento dos Padres do Deserto que apresentei até este momento.

O que hoje é chamado lectio divina é apresentado como um método de leitura da Escritura e também da leitura dos Padres da Igreja e dos Padres do monaquismo. Consiste numa leitura lenta e meditativa do texto, uma leitura feita mais com o coração do que com a mente, como se costuma dizer, sem um objetivo prático, mas simplesmente deixando-se ser impregnado com a Palavra de Deus.

Este método, enquanto método, tem suas origens no século 12, e está relacionado como que tem sido chamado de «teologia monástica». Nesta época, os pré-escolásticos desenvolveram seu método que passava da lectio para a quaestio, e daí para a disputatio. A reação dos monges foi, então, de desenvolver seu próprio método: lectio levando à meditatio, e daí à oratio... e um pouco depois acrescentaram a contemplatio que foi então distinta da oratio.

Mesmo se a abordagem da Escritura que descrevi como sendo a dos Padres do Deserto fosse, em realidade, uma abordagem que eles tinham em comum com o povo de Deus como um todo, a nova abordagem ou novo «método» - uma vez que agora era um exercício, uma observância importante da existência monástica - refugiou-se nos mosteiros.

Muito depois, à época da devotio moderna, a «leitura espiritual» se tornou popular, e tomou-se cuidado de distingui-la claramente da lectio divina monástica. Seguindo uma tendência geral, a vida espiritual tornou-se especializada, ou divida em compartimentos estanques.

Seria estranho para o tema da presente conferência analisar esta longa evolução. Eu me permitirei, entretanto, tecer algumas observações. A primeira é a de que pode-se perguntar como a teologia teria se desenvolvido se os monges não tivessem rejeitado o método que estava nascendo.

De fato, o que se tem chamado de «teologia monástica» não tinha nada de especificamente monástico até o século 12. Foi o modo pelo qual a teologia se desenvolveu entre o povo de Deus seguramente com tanto pluralismo nos mosteiros quanto fora deles. Esta maneira discernida e contemplativa de expressar a teologia até então conhecia como levar em conta e transformar (hoje se diria, inculturar), as contribuições dos diversos métodos e das diversas correntes de pensamento. Poder-se-ia legitimamente cogitar como a teologia dos séculos subseqüentes teria evoluído caso os monges não tivessem rejeitado o método nascente e tivessem sabido como assimilá-lo como assimilaram tantos outros anteriormente. De todo modo, quer tenha sido bom ou não, conservou-se um modo de fazer teologia denominado «"monástico» nos mosteiros, enquanto a teologia escolástica se desenvolvia nas escolas fora dos mosteiros. Por um Tomás de Aquino, é verdade que tal novo método ainda era usado numa perspectiva profundamente contemplativa. Entre os comentadores - e os comentadores dos comentadores - tornou-se cada vez mais seco.

Foi o mesmo com o estudo da Escritura. Até hoje, os monges desempenharam um papel predominante na interpretação e uso da Escritura, mesmo se sua abordagem não seja essencialmente diferente daquela do povo de Deus como um todo. Da época em que sob a influência do novo modo de pensar, os monges desenvolveram também seu próprio método de leitura, paralelo ao da escolástica, existem na Igreja duas abordagens da Escritura: uma que diz respeito à leitura com o coração (e que em certas épocas, irá deixar de trazer junto a inteligência) e uma de orientação científica, que se tornará cada vez mais seca.

Por outro lado, deveríamos compreender que os monges, ao proporem seu próprio método de lectio, já estavam dependentes da nova mentalidade pré-escolástica que havia criado a necessidade de um método. Os primeiros monges não tinham método. Eles tinham uma atitude de leitura.

Muitas vezes nos séculos passados os monges esqueceram sua maneira própria característica de leitura da Escritura e dos Padres e de fazer teologia, e adotaram a de todo mundo. Foi então necessário para os monges de hoje voltar ao modo de fazer teologia que não o dos livros escolásticos, e voltar a um modo de ler as Escrituras e os Padres que não o da exegese científica moderna. Temos uma dívida de gratidão a Dom Jean Leclercq por ter apontado ao monaquismo contemporâneo esta direção. Além disto, devemos dizer com um sorriso que os conceitos de teologia monástica e de lectio divina como entendemos estas duas realidades hoje em dia, são as duas mais belas criações de Dom Jean Leclercq.

Repito que foi importante que o monaquismo redescobrisse esta maneira de ler a Escritura e seu modo de fazer teologia. Mas ele tem de ir adiante: reconhecer que esta maneira de leitura da Escritura e de fazer teologia não é em absoluto especificamente monástica. É todo o povo de Deus que deve redescobri-la, uma vez que esta é a maneira pela qual, numa época, todo o povo de Deus costuma ler a Escritura e fazer teologia.

Devemos, entretanto, dar outro passo. Precisamos ir para além da separação da vida do monge da dos outros cristãos. Devemos redescobrir a unidade primitiva que foi perdida no caminho.

De fato, se é verdade que deveríamos nos alegrar com o lugar que a lectio divina tem tido na vida dos monges e também na de muitos cristãos foras dos mosteiros nos últimos 40 anos ou quase, é também verdade que a atitude presente em relação a esta realidade não é sem perigo.

E este perigo reside em que, com muita freqüência, embora de modo algo imperceptível, a lectio é transformada num exercício - um exercício entre outros, mesmo se considerado o mais importante de todos. O monge fiel tira uma meia hora ou uma hora ou até mais de lectio todos os dias, e se movo daí para a leitura espiritual, seus estudos e suas outras atividades. Ele adota uma atitude gratuita de escuta de Deus durante esta meia hora, e muitas vezes se dá a outras atividades durante o resto do dia com o mesmo frenesi, o mesmo espírito de competição, a mesma distração, como se não tivesse escolhido uma vida de oração contínua e de constante busca da presença de Deus.

Nada é tão absolutamente estranho ao espírito dos monges do deserto que esta atitude, que é uma contradição da verdadeira natureza da lectio divina. O que é a essência da lectio, como descrito pelos seus mais importantes expoentes, é a atitude interior. Esta atitude, porém, não é algo que se possa assumir por meia hora ou uma hora por dia. Tem-se esta atitude ou todo o tempo ou nunca. Ela impregna todo o dia, ou o exercício da lectio não tem sentido.

Permitir-se ser questionado por Deus, permitir-se ser desafiado, formado, através de todos os elementos do dia, através do trabalho assim como dos encontros fraternais, através da dura ascese de um trabalho intelectual sério assim como através da celebração da liturgia e das tensões normais da vida da comunidade - tudo isto é terrivelmente exigente. Relegar esta atitude de abertura total a um exercício privilegiado que se destina a impregnar por si o resto de nosso dia é talvez um modo muito fácil de fugir destas exigências.

Para os Padres do Deserto, a leitura, a meditação, a oração, a análise, a interpretação, o exame, a tradução da Escritura - tudo isto formava um todo inseparável. Seria impensável para um Jerônimo considerar que sua análise elaborada do texto hebraico da Escritura para descobrir-lhe todas as suas nuances fosse uma atividade que não merecesse o nome de lectio divina.

Certamente é bom que tenhamos redescoberto a importância da leitura da palavra de Deus com o coração, de lê-la de tal modo que permitamos que ela nos transforme. Mas penso que é um erro fazer um exercício dela ao invés de impregnar com esta atitude as mil e uma facetas de nossa abordagem da Escritura.

Além do mais, crer que o texto da Escritura possa me encontrar em minha vida profunda, que ele possa me desafiar e me transformar só quando venho ante o texto nu sem recurso a todos os instrumentos que poderiam me fazer encontrá-lo no seu primeiro sentido, faz correr o risco de conduzir-nos a uma atitude fundamentalista - aliás não rara em nossos dias - ou de novo, a um falso misticismo que também é bastante comum.

Uma vez que se admite em geral em nossos dias que a lectio divina pode ter como seu objeto não só a Escritura, mas também os Padres da Igreja e, para os monges e monjas, em particular os Padres do monaquismo, permito-me uma reflexão também sobre isto.

A tradição monástica, sendo uma interpretação viva da Palavra de Deus, tem uma importância semelhante a ela, embora secundária (Vemos, além disto, como os Padres do Deserto tenderam a dar o mesmo poder à Palavra ou ao exemplo de um Ancião transformado pelo Espírito como à Palavra de Deus ou um exemplo da Bíblia. Mas esta palavra vivida que está na tradição monástica também necessita ser continuamente interpretada e re-interpretada).

Em nossos dias, os Padres têm sido redescobertos nas comunidades monásticas. E devemos louvar esta redescoberta. Mas sua mensagem, mesmo mais do que aquela das Escrituras, está enraizada numa dada cultura que não é, como se assume com muita freqüência, a cultura monástica - como se houvesse uma só - mas mais o contexto cultural de tal época particular na qual os monges antigos viveram sua vocação monástica. O leitor moderno deve se expor a si mesmo (a) sem uma mente crítica que obstaculize a força transformante da graça com a qual viveram e se expressaram: mas ele/ela podem só dar este passo após terem "descascado" com uma sensibilidade crítica muito afinada a "casca" cultural sob a qual está escondido este precioso alimento.

Assim como não existe uma cultura cristã, paralela a todas as culturas profanas, mas muitas culturas locais que foram cristianizadas - e em diferentes graus, do mesmo modo, não existe uma cultura monástica, mas muitas diferentes culturas transformadas pelo seu encontro com o carisma monástico. O uso dos Padres como assunto para a lectio divina requer um sério trabalho de exegese e de estudo para recapturar a realidade em que eles viveram para além da «casca» cultural. De outra forma, lê-se a si mesmo nos textos que se admira, e obviamente, acha-se mais a si mesmo do que admira-se a outrem.

O monge de hoje será desafiado, chamado à conversão, transformado, pela leitura dos Padres do monaquismo, somente com a condição de que se permita ser tocado por eles em todos os aspectos de sua experiência monástica. E isto irá só acontecer na medida em que se une a eles no conjunto de sua experiência: o que pressupõe uma análise detalhada de sua linguagem e de sua maneira de falar, de seu pensamento, tanto filosófico, quanto teológico, do contexto cultural em que viveram. Parece-me artificial e mesmo perigoso distinguir este estudo da lectio propriamente dita, como se fora apenas um prelúdio...

O monge de hoje necessariamente pertence a uma cultura definida e a uma Igreja local, e portanto a uma cultura cristã definida. Esta é a cultura que, nele, encontra a tradição monástica e deve ser desafiada e transformada por ela. Temo que, muitas vezes, em nossa abordagem dos Padres, brinquemos de vestir a cultura monástica do passado ao risco de transformar nossos mosteiros em campos de refugiados culturais.

Conclusão

Os Padres do Deserto nos lembram da importância primordial da Escritura na vida do cristão e da necessidade de nos deixar ser constantemente transformados na Palavra de Deus que é o Cristo.

Além disto, mesmo um estudo rápido como fizemos da maneira em que eles abordaram a Escritura, por si mesmo nos faz trazer à baila certos aspectos da concepção moderna da lectio divina, ou mais precisamente, apela para que ir além deles para chegar a um entendimento mais profundo da unidade de sua experiência vivida. O monge, mais do que qualquer outro, não pode se permitir estar dividido. Seu próprio nome, monachos, o lembra sem cessar da unidade da preocupação, da aspiração e de atitude própria do homem ou mulher que escolheu viver um único amor com um coração indiviso.


NOTAS:

Várias das citações dos autores monásticos antigos, nesta conferência, foram tomadas de Louis Leloir, Lectio Divina and the Desert Fathers, Liturgy, Vol. 23, n. 2, 1989, pp. 3-38. Versão mais curta do mesmo estudo: L’Ecriture et les Pères. Révue d’Ascétique et de Mystique 47 (1971), pp. 183-189.

Tradução de Cecilia Fridman, Rio Negro, PR, Brasil, para o Mosteiro Trapista Nossa Senhora do Novo Mundo.

FONTE:

Extraído de: "Prière; colloque de Sénanque", « Questión de...», nº 69.

Revue trimestrielle - Albin Michel, B.P. 21 - 84220 Gordes (Francia).

Contemplatio

A «Oração de Jesus»

Tradução: Pe. Pavlos Tamanini, hieromonge

Apresentação

xiste uma profunda relação entre a veneração milenar a Santa Face de Jesus Cristo (Mandylion) e outras devoções também dirigidas aos traços de sua Pessoa: seu Santo Nome, à Eucaristia (devoção por excelência), a seu Sagrado Coração. Com efeito, as quatro se referem aos aspectos mais significativos do ser humano e todas, em ultima instância nos conduzem à Pessoa em si do Deus encarnado.

  1. A Face, expressão do interior e que nos relaciona com o outro.
  2. O coração, sede da vida e, por analogia, da emoção mais profunda e espiritual do ser humano, o amor. O amor é o que define Deus. Se era “O Que É” no Antigo Testamento, João o define como Amor no Novo Testamento. Desse Ser que é Amor nós participamos. E este ser por essência, que é amor, se manifesta tornando-se um de nós com coração humano e palpitante.
  3. A Eucaristia, meio privilegiado escolhido por Cristo para permanecer realmente entre nós, escondido aos olhos físicos humanos, mas vivo e real aos olhos do espírito daqueles que crêem.
  4. O Nome, que define a Pessoa como um todo e, que quando o invocamos, como fez o cego de Jericó, suplicamos com ele à Pessoa que nomeia, implorando sua ajuda e misericórdia: «Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!»

A oração do coração ou a oração da invocação de Jesus, remonta às origens do monacato. O primeiro a mencioná-la explicitamente foi Diadoco de Fotice, no século IV: «Os que não cessam de meditar nas profundezas de seu coração o Nome santo e glorioso de Jesus, poderão ver um dia a luz em seu espírito.»

Sua origem, porém, é mais antiga, pois é já encontrada nos Evangelhos: «Jesus, Filho de Davi, tem piedade de mim!», gritava com insistência o cego que estava à beira do caminho de Jericó. O mesmo clamavam os dez leprosos, nas terras de Samaria: «Jesus, Mestre, tem piedade de nós!» Todos foram curados, graças à sua fé e a profundidade de seu clamor. Esta invocação contínua do Nome de Jesus feita de um desejo cheio de doçura e de alegria, faz com que o espaço do coração se transborde em alegria ate a serenidade, até o pensamento não cessar de invocar o Nome de Jesus e o espírito estar totalmente atento à invocação do Nome divino; luz do conhecimento de Deus cobre com sua sombra toda a alma como uma nuvem inflamada em chamas. A oração Jesus é semelhante à oração do rosário de Maria em sua origem e objetivo: ambas têm suas raízes nos meios monásticos do Oriente (a oração de Jesus) e do Ocidente (rosário); ambas são orações de súplicas; em ambas imploramos aquilo que mais desejamos e necessitamos de verdade e que não sabemos, porque podemos desconhecer aquilo que desejamos; em ambas pedimos para que o Espírito fale em nós, utilizando para isto palavras da Escritura ou propostas pela Igreja e pela Tradição; ambas são orações para todas as pessoas, que recitadas com tranqüilidade e sem pressa, concentrando docilmente o ânimo no que dizemos, produzem sossego e, com o tempo e perseverança, a paz duradoura e a restauração da vida.

A oração de Jesus, por sua brevidade, pode ser rezada em qualquer lugar e em todas as horas. Mesmo que sua base seja a oração do cego de Jericó, pode ser dirigida por pessoas variadas: «Jesus, Filho de Deus, tem piedade de nós!» Ou, «Jesus, Filho de Deus, por meio da Virgem Maria, tem compaixão de nós pecadores!» etc.

Esta oração ajusta-se perfeitamente ao conselho evangélico: “É preciso orar incessantemente, sem desfalecer”. Se te sentires chamado a seguir este caminho da oração do coração, busca um bom conselheiro (pai espiritual) que te guie e começa já. Deus irá fazendo o resto, se é que deseja que este seja a tua forma de te dirigires a Ele.

Se a Igreja respira com dois pulmões – Oriente e Ocidente – pode-se dizer que a oração de Jesus é a expressão mais característica da espiritualidade da Igreja Oriental. Pelo bem que tem feito e faz, e pela influência que atualmente tem no Ocidente, vale a pena conhecer um pouco desta fonte escondida de piedade e espiritualidade. Para ampliar o conhecimento sobre o tema siga lendo outros fragmentos baseados em apontamentos traduzidos livremente do original em catalão, de Julià Maristany - SJ.

Raízes Históricas da Oração de Jesus

Jesus, salva-me! Kyrie eleison! Este clamor do coração que se encontra no centro da oração do Oriente procede diretamente do Evangelho: é o clamor do cego de Jericó e a súplica do publicano. Este pedido de auxílio é, antes de tudo, um ato de fé em Jesus Salvador. O próprio nome de Jesus significa « salva» e é uma confissão, no Espírito Santo, de que Ele é o Senhor. Recordemos que «ninguém pode pronunciar o Nome de Jesus sem a ajuda do Espírito Santo.» (I Cor 12,3).

O nome de Jesus não foi tão somente um nome que seus pais puseram-no quando nasceu --de acordo com o que pediu José e Maria em sua Anunciação: «Lhes porás o nome de Jesus» -- mas é também um nome divino que lhe foi dado pelo Pai, tal como disse Jesus na Oração Sacerdotal (Jo 17,11): «Pai Santo, guarda-os em teu nome aqueles que me destes, para que sejam um, como o somos nós.»

São Paulo também dirá em um hino, (Fl 2, 9-11) a propósito da humilhação e exaltação de Cristo: «Foi-Lhe concedido o Nome que está acima de todo nome, para que, ao Nome de Jesus dobrem-se os joelhos, nos céus, na terra e nos abismos e toda língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.» A glória do cristão é proclamar este Nome, e a sua felicidade estará em sofrer por ele: «Se receberes insultos porque pregais em nome de Cristo, felizes sois vós! O espírito de glória, que é o Espírito de Deus, repousa sobre vós.» (IPd 4, 13).

Em seu Nome os cristãos são batizados; por causa de seu Nome, são perseguidos; por seu Nome sofreremos e seremos glorificados (Lc e At). Pedro confessa ante o Sinédrio (At 4,2): «A salvação não se encontra em mais ninguém porque, sob o céu, Deus não deu aos homens outro nome no qual possam ser salvos.» Paulo, depois de perseguir àqueles que invocavam o Nome do Senhor (At 9,14), dirige-se, em sua Carta aos Coríntios, a todos aqueles que invocam o Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, animando seu estimado discípulo Timóteo a buscar a fé e a caridade com todos os que, com o coração puro, invocam o Nome do Senhor.

Os textos que fazem referência ao Nome de Jesus são inúmeros e pertencem a todas as tradições: Paulo, os Sinóticos e João. O Nome de Jesus é divino e forte. E quem o invoca, sempre é escutado. Ele mesmo disse em Jo 16, 23-24: «Em verdade vos digo, que meu Pai os concederá tudo o que pedires se o fazeis em meu Nome. Até agora não haveis pedido nada em meu Nome; fazei-o em meu Nome e recebereis tudo o que pedis, e vossa alegria será plena.»

O Nome de Jesus é Eucarístico: «Tudo o que façais, seja por palavras seja por obras, fazei em nome de Jesus, dirigindo ação de graças a Deus por meio dEle» (isto significa Eucaristia – Col 3, 17). Os textos de Efésios, Tessalonicenses e Lucas nos animam a orar sempre e em toda a ocasião e constantemente. A invocação ao Senhor é uma oração interior, porque não sabemos o que pedir, para rezar como é devido; é Ele, o Espírito, quem ora em nosso lugar (Rm 8,26). E ninguém pode dizer «Jesus» se não é movido pelo Espírito Santo (1Cor 12,3). Assim, pois, o Novo Testamento legitima a invocação do Nome de Jesus e como ela nos insere na graça batismal. Esta invocação do Nome de Jesus não se converterá na Oração de Jesus até que não se una ao desejo da oração contínua expressa nas invocações breves que contém o Nome do Senhor ou de Jesus. São Cassiano e Santo Agostinho dão testemunho da existência destas breves orações ou jaculatórias entre os eremitas do deserto do Egito.

Os Padres do Deserto

Os Padres do deserto retomam a oração do publicano no século IV. Ammonas, no deserto egípcio, aconselha que se conserve sempre no coração as palavras do publicano, para experimentar a salvação e Macário interrogado sobre como orar, ensina: «Não é necessário perder-se em palavras; é suficiente que estendais as mãos e digais: Senhor, como Tu queres e como Tu sabes, tem piedade! E se vier o combate (a tentação): Senhor, vem em meu auxilio! Ele sabe o que nos convém e terá misericórdia.»

Foi Diadoco de Fótice, no século V, quem propôs invocar no fundo do coração sem interrupção ao Senhor Jesus e a seu santo e glorioso Nome, para purificar e unificar a alma dividida pelo pecado, e experimentar a Graça como base da perpétua recordação de Deus: Quando, recordando a Deus, fechamos as saídas do espírito, este só precisa que lhe deixem alguma atividade adequada para manter em ação seu natural dinamismo. Este é o momento de entregar-lhe a invocação do Nome de Jesus como única atividade em que pode concentrar-se tudo o que quer. Está escrito: «Ninguém pode dizer: Senhor Jesus, senão pelo Espírito Santo.» E Barsunufio insiste: «A nós débeis, só nos resta refugiarmo-nos no Nome de Jesus.»

Foi em Gaza, no deserto Palestino, onde os monges deram à invocação do Nome de Jesus uma formulação mais desenvolvida. O jovem Dositeo manteve sempre a memória de Jesus durante a grave enfermidade da que deveria morrer. Seu pai espiritual, Doroteo, o havia ensinado a repetir sem descanso: «Filho de Deus, vem em meu auxilio!» Esta era sua oração contínua. E quando já estava tão enfraquecido que não podia repeti-la, deu-lhe a seguinte conselho: «Tem presente somente a Deus e pense que Ele está do teu lado.» Assim pois, encontramos que a tradição da invocação do Nome de Jesus ou, Oração de Jesus, se estendia pela Palestina, quando tem início a segunda etapa em que se associa o hesicasmo sinaítico ao do Monte Atos.

Monte Atos

Na segunda metade do século XII e ao longo do século XIV, floresceu no Monte Athos, a Santa Montanha de Macedônia, o renascimento do ideal hesicasta. A oração de Jesus era acompanhada por uma disciplina da respiração, sistematizada por Nicéforo, o hesicasta, e por Gregório o Sinaíta. O método se baseia em retardar a respiração e buscar o lugar do coração dentro de si mesmo e se concentrar. Tudo isto, simultaneamente, com a invocação repetida da oração de Jesus; «Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim» – acompanhando a inspiração e a expiração.

Este movimento de interiorização se faz em dois tempos, segundo as duas partes que compõem a fórmula da oração: «Senhor Jesus, Filho de Deus» e «tem piedade de mim pecador.» O ritmo da respiração e as batidas do coração participam também da oração complementando-se mutuamente: em simultaneidade com a primeira parte da oração: os pulmões inspiram o nome de Jesus, o qual permite à diástole que o espírito se lance por inteiro fora de toda a matéria e, simultaneamente, a segunda parte da oração: «tem piedade de mim, pecador», os pulmões expiram o ar contaminado, na vez que, pela sístole do coração, o espírito vem sobre si mesmo. A oração de Jesus tem pois, certo aspecto técnico e precisa de um adestramento. Mas não se pode reduzir a uma simples mecânica, porque «ninguém pode dizer ‘Senhor Jesus’ senão por influxo do Espírito Santo» (1Cor 12,3). Isto não impede que tais indicações dadas pelos monges, sejam de uma grande ajuda, porque são fruto de sua própria experiência.

O Hesicasmo

A palavra hesiquia, em grego, traduz-se como sendo um estado de tranqüilidade, de paz ou de repouso. Quem a possui encontra-se equilibrado, vive em paz; as vezes cala e guarda silêncio. Recorda a atitude que Platão afirma ser a do autêntico filósofo: mantém-se tranqüilo e se ocupa daquilo que lhe é próprio. Também se ajusta às palavras do Livro dos Provérbios: «O homem sensato sabe se calar»; ou ao estilo do solitário de quem disse o Profeta Baruc: «É bom esperar em silêncio a Salvação do Senhor.»

No Novo Testamento, o próprio Cristo disse a seus discípulos; «Vinde a Mim todos os que estais cansados sob o peso de vosso fardo, e eu vos darei descanso. Tomai sobre sobre vós o meu jugo, e aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso (hesiquia) para vossas almas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve». (Mt 11, 28-29). Ammonas, sucessor de Santo Antônio do Egito, fala de como a hesiquia é o caminho próprio do monge e escreve uma carta mostrando que é o fundamento de todas as virtudes.

Foram os anacoretas os primeiros a se chamarem hesicastas. Se a virtude dos cenobitas (monges que vivem em comunidades) é a obediência, a doshesicastas (anacoretas ou solitários) é a oração perpétua. A busca da hesiquia é tão antiga como a vida monástica.

No século VI São João Clímaco, abade do Monastério do Sinai e autor da «Escada do Paraíso», uniu a hesiquia e a Recordação de Jesus. A hesiquia é a adoração perpétua na presença de Deus: que a recordação de Jesus se una a tua respiração e rapidamente te darás conta da utilidade da hesiquia. A oração ideal é a que elimina os raciocínios e se converte em uma só palavra.

A memória de Jesus provê de forma e conteúdo este tipo de oração. A união da memória (lembrança) de Jesus e a respiração será novamente empreendida por Hesiquio de Batos que já a chama Oração de Jesus: «Se, com sinceridade queres afugentar os pensamentos, viver em quietude, sem dificuldade, e exercer a vigilância sobre teu coração, deves aderir a Oração de Jesus à tua respiração e prontamente o conseguirás.» A união da respiração com a Oração de Jesus, em sua fórmula desenvolvida: «Senhor Jesus, Filho do Deus vivo, tem piedade de mim, pecador!», constituirá o fundamento do hesicasmo bizantino do Monte Atos, no século XIV.

«Quando rezares, inspira ao mesmo tempo e, que teu pensamento, dirigindo-se ao interior de ti mesmo, fixe tua meditação e tua visão no lugar do coração de onde brotam as lágrimas. Que tua atenção permaneça ali, tanto quanto te for possível. Será para ti de grande ajuda. Esta invocação de Jesus libera o espírito de sua atividade, outorga a paz, e ajuda e descobrir a Oração Incessante do coração, por graça do Espírito vivificante, em Jesus Cristo, Nosso Senhor.»

A Filocalia

Já em fins do século XVIII compila-se e traduz-se para o eslavo a Filocalia com o que a tradição hesicasta chegará primeiramente à Rússia, e logo à Romênia, e dali a toda à Europa Ortodoxa. A Filocalia (termo grego que significa amor ao belo e ao bom) está composta por uma antologia de textos ascéticos e místicos, recopilados por Macário de Corinto e Nicodemo, o Hagiorita. Foi publicada em Veneza, em 1782 e diz-se que ela constitui o breviário do hesicasmo. Sua publicação coincide com o renascimento da fé ortodoxa na Grécia do século XVIII e, ao ser traduzida para o eslavo por Paissy Velichkovsky, e para a língua russa por Ignacio Brianchaninov, em 1857, marcou a renovação do monaquismo oriental. A filocalia eslava foi utilizada pelo grande São Serafim de Sarov e constitui o núcleo dos relatos sinceros de um peregrino russo ao seu pai espiritual, pequena obra que apareceu em Kazan em 1870.

Os Relatos de um Peregrino Russo

«Os Relatos de um Peregrino Russo» pertencem ao movimento literário russo do século XIX, no que tem de mais sereno e puro. O peregrino faz com que o leitor penetre no coração da vida russa, pouco depois da Guerra da Crimea e antes da abolição da servidão, ou seja, entre os anos de 1856 e 1861. Tudo está enquadrado numa planície imensa, com igrejas de cores claras e sinos refulgentes e sonoros.

Cristão ortodoxo como é, sua preocupação é passar da «noite escura» à «noite luminosa»: a contemplação da Santíssima Trindade.

O peregrino (strannik) descreve sua odisséia através da Rússia, que percorre com um alforje, contendo tão somente um pão seco e uma Bíblia. Em um monastério encontra um starets (pai espiritual) e o interroga sobre a maneira de praticar o conselho do apóstolo: orar sem cessar. O staretz lhe explica a prática da oração de Jesus. Submete-lhe – se se pode falar desse modo – a um regime de treinamento progressivo. Faz-lhe dizer a oração de Jesus, primeiro três mil vezes por dia, depois seis mil vezes e finalmente, doze mil vezes.

Logo o peregrino deixa de contar o numero de orações; associa o “Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus, tem piedade de mim pecador!”, com cada respiração, com cada batida do coração. Chega o momento em que já não pronuncia nenhuma palavra: os lábios se calam e só resta escutar falar o coração. Assim, a oração de Jesus serve de alimento que sacia a fome, serve de bebida para sacia a sede, de repouso para a fadiga, de proteção contra os adversários e demais perigos; inspira as conversações que o peregrino tem com as pessoas que encontra, pessoas simples do povo, como ele. A fé do peregrino não é emotividade poética.

Nutrido dos ensinamentos teológicos, todas as suas ações são guiadas pelo desejo da perfeição da vida espiritual, cuja meta última é a contemplação. Se a fé precede às obras, sem obras a fé não existe. Consegue ignorar o frio, a fome e a dor; a própria natureza lhe parece transfigurada.

“Arvores, ervas, terra, ar, luz, todas estas coisas me dizem que existem para o homem e, para o homem dão testemunho de Deus: todas oravam, todas cantavam a glória de Deus.”

O campesino, em seu peregrinar pelas estepes da Rússia invocando constantemente o Nome de Jesus e falando a todos da oração de Jesus, conheceu condenados a trabalhos forçados, desertores, nobres, membros de diferentes classes, sacerdotes do campo... Mas nada lhe detinha.

Este pequeno livro popularizou esta oração, tanto no Oriente como no Ocidente. Graças a esta obra a Oração de Jesus ou a Oração do Coração, ultrapassou os muros dos monastérios para chegar à piedade popular. Já se disse que esta obra fez mais pela compreensão entre os cristãos que um sem número de reuniões teológicas.

Recordemos Textos seletos:

A oração de Jesus, interior e constante, é a invocação contínua e ininterrupta do Nome de Jesus por meio dos lábios, do coração e da inteligência, sentindo sua presença em todas as partes e em todo momento, inclusive quando dormimos. Se expressa com estas palavras: ‘Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim!’ Aquele que se habitua a esta invocação sente um grande consolo e a necessidade de dizê-la sempre; e depois de um certo tempo já não podemos passar sem dizê-la, e, sozinha, ela nasce do interior.”»

«Senta-te no silêncio e na solidão; inclina a cabeça e fecha os olhos; respira mais suavemente, olha com tua imaginação ao interior de teu coração, recolhe tua inteligência, quer dizer, teu pensamento da mente ao coração. De vez em quando repita silenciosamente ou simplesmente em espírito: “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim!” Esforça-te por afastar todo pensamento, seja paciente e repita este exercício sempre.»

«Todo meu desejo estava fixo sobre uma só coisa: dizer a oração de Jesus e, desde que me consagrei a isto, estive tomado de alegria e de consolo. Era como se meus lábios e minha língua pronunciassem por si mesmas as palavras, sem esforço de minha parte.»

«Então senti como um rápido calor em meu coração, e tal amor por Jesus Cristo em meu pensamento, que me imaginei, a mim mesmo, ajoelhando-me a seus pés – Ah se pudesse vê-lo! – abraçando-o, beijando com ternura seus pés e agradecendo-lhe com lagrimas haver me permitido, em sua graça e seu amor, encontrar em seu nome tão grande consolo – a mim sua criatura indigna e pecadora. Em seguida sobreveio em meu coração um calor agradável que se expandiu para todo meu peito.»

«Algumas vezes meu coração resplandecia de alegria, parecia leve, pleno de liberdade e de consolo. As vezes eu sentia um amor ardente por Jesus Cristo e por todas as criaturas de Deus... As vezes, invocando o nome de Jesus, estava repleto de felicidade e, depois disto, conhecia o sentido destas palavras: “O reino de Deus está dentro de vós”»

Os relatos, são na verdade uma autobiografia? Ou um conto espiritual, ou uma obra de propaganda? Neste caso, de que meio emana? Trata-se de perguntas para as quais não temos respostas. Nem tudo está explicito, resplandecente como ouro. A oração de Jesus está apresentada, talvez excessivamente, como atuando ‘ex opere operato’. Um teólogo, um hegúmeno um sacerdote que tenha almas sob sua responsabilidade, se expressaria com maior sobriedade e prudência. Mas não poderia permanecer insensível ao frescor do relato, à sua aparente sensibilidade e tampouco à sua beleza espiritual e finalmente aos dons literários do autor. Os relatos tiveram continuação: uma segunda parte, atribuída ao mesmo autor que a primeira, apareceu vinte e seis anos depois e, nas mesmas condições misteriosas. A segunda parte é muito diferente. Ela teologa, reproduz conversas que foram feitas entre um professor e um starets, não tem a ingenuidade (talvez só aparente) e o encanto da obra primitiva e provavelmente não foram escritas pela mesma pena.

Significado da Oração de Jesus

«Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador!»

Senhor: vem de «Kyrios» e é como dizer, Deus. Pois para dizer «Jesus é Senhor» é preciso a ajuda do Espírito Santo – Deus.

Jesus: é nome e mistério de Salvação.

Cristo: quer dizer Messias ou seja, Sacerdote, Profeta e Rei.

No Antigo Testamento o nome de Deus passa de nome pronunciável a indizível ou inefável, pelo que se substitui por Adonai para não permitir imagens sequer do nome de Deus. No Novo Testamento o Nome de Deus é pronunciável porque na nova economia Deus se une a nossa carne. «Porás o nome de Jesus, porque Ele salvará seu povo de seus pecados.»

A Oração Hesicasta ou Oração de Jesus contém toda a verdade dos Evangelhos e incorpora os dois grandes mistérios que caracterizam a revelação e a fé cristã.

  1. A Encarnação - Jesus (humanidade) Filho de Deus e Senhor (divindade).
  2. A Trindade – Filho de Deus (o Pai) , Jesus - Senhor (Espírito Santo que nos dá a força para confessá-lo).

É uma prece de adoração e penitência que, unida à inspiração, expressa acolhida e, unida à expiração, expressa o abandono. A Oração de Jesus aparece intimamente associada às atitudes de ‘metanóia’ (mudança interior, nova escala de valores); à compunção e humildade, à confiança segura e audaz, à atenção dos sentidos e, o coração, às palavras e à Presença; e em ultimo lugar, à hesiquia(busca da quietude e da autêntica unificação interior através da invocação do Nome de Jesus).

A Oração de Jesus pode ser praticada de duas maneiras diferentes:

  1. Livre: permite encher o vazio entre o tempo de oração e as atividades ordinárias da vida e unir-nos a Deus em momentos de trabalhos.
  2. Formal: concentrados e com afastados de toda outra atividade. Para isto, é bom estar sentado, com pouca luz, olhos fechados, segurando, se for preciso, um rosário oriental ou ocidental, que é um meio para nos concentrar melhor.

Recomenda-se não mudar muito a fórmula escolhida desde o início, ainda que certas variações nos pareçam oportunas para evitar o tédio. Aos que começam, recomenda-se a alternativa entre a invocação pronunciada pelos lábios e a oração interior: «Quando se reza com a boca, há que se dizer a oração com calma, docemente, sem agitação alguma, para que a voz não atrapalhe ou distraia a atenção do espírito, até que este se habitue e possa rezar por si só, com a Graça do Espírito Santo.»

Todas estas indicações não tem maior objetivo que alcançar a concentração em Jesus, do corpo, da alma e do espírito. De fato, as palavras que compõem a oração de Jesus variam segundo as épocas e os autores. A fórmula mais breve repete unicamente o Nome de«Jesus», e a mais longa diz: «Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus vivo, tem piedade de mim, pobre pecador!» Mas, uma vez escolhida, recomenda-se evitar o quanto possível variá-la.

Assim, no coração, ao estar integradas e unificadas todas as forças e partes do ser humano, «o coração absorve o Senhor e o Senhor absorve o coração, e os dois se fazem um.» E continua o texto: «Mas isto não é obra de um dia ou dois. Requer muito tempo. Há que se lutar muito e durante muito tempo para alcançar o afastamento do inimigo e a habitação de Cristo em nosso interior.»

Este estalo de amor no pobre coração humano o eleva acima de todas as criaturas. Não se trata, porém, de uma elevação que implique uma exclusão, mas o contrário: tal elevação de amor é uma inefável inclusão de tudo o que foi criado; é uma capacidade e potência de amor por todas as pessoas e coisas.

Isaac, o Sírio, é quem melhor falou, no Oriente, deste amor universal, com uma ternura e simplicidade que recorda Francisco de Assis, no Ocidente:

«Que é um coração compassivo? É um coração que arde por toda a Criação: os seres humanos, pássaros, animais, demônios e por toda criatura. Quando pensa nisto e quando os vê, seus olhos se enchem de lágrimas. Tão intensa e violenta é sua compaixão, tão grande é sua constância que seu coração se encolhe e não pode suportar ouvir a presença do menor dano ou tristeza no seio da Criação. Por isso que, com lágrimas, intercede pelos animais irracionais, pelos inimigos da verdade e por todos os malfeitores, para que sejam preservados do mal e perdoados”. É a mesma compaixão que deve brotar do teu coração: uma compaixão sem limites, à imagem de Deus. Porém, nada pode ser forçado. A oração deve ir estabelecendo seu próprio ritmo e freqüência que é o ritmo que Deus quer para nós.»

A invocação do Nome de Jesus no Ocidente

A Igreja Romana tem uma festa do Santo Nome de Jesus. Desde Pio X, esta festa é celebrada entre o domingo que fica entre o dia primeiro de Janeiro e a festa Epifania no dia 02 de janeiro. A liturgia e o ofício da festa foram compostos por Bernardino dei Busti (+1500) e aprovados pelo Papa Sixto IV. Originalmente era restrita aos conventos franciscanos e, mais tarde, foi estendida para toda Igreja de Roma.

O estilo retrocede à época em que foram compostos e difere muito do antigo estilo romano. Não se pode mais que admirar a beleza das leituras das Escrituras e das homilias de São Bernardo escolhidas para as matinas. Os hinos ‘Jesu dulcis memória, Jesu rex admirabilis’, atribuídos também a São Bernardo, foram tomados, na verdade, de um ‘jubilus’, escrito por um desconhecido do século XII. As litânias do Santo Nome de Jesus, aprovadas por Sixto V, são de origem incerta; talvez foram compostas, no início do século XV, por São Bernardino de Sena e São João Capistrano. Essas Litanias, tal como mostram a invocações; “Jesus, esplendor do Pai; Jesus, sol de Justiça; Jesus, doce e humilde coração; Jesus, aficionado da castidade, etc” estão consagrados mais aos atributos de Jesus que ao seu próprio Nome. Poderia, até certo ponto, comparar-se ao “Akathistos do Doce Nome de Jesus”, da Igreja Ortodoxa. É sabido que aquela devoção esteve cercada pelo monograma JHS, que não significa, como muitas vezes se diz, “Jesus Hominum Salvator”, senão que, simplesmente, apresenta uma abreviação do nome de Jesus. Os jesuítas, colocando uma cruz sobre o H, fizeram deste monograma o emblema da Companhia.

Em 1564, o Papa Pio IV aprovou a Fraternidade dos Muitos Nomes de Deus e de Jesus, que se transformou, mais tarde na ‘Sociedade do Santo Nome de Jesus’, ainda existente. Esta fundação foi conseqüência do Concílio de Lyon, em 1274, que prescreveu uma devoção especial ao Nome de Jesus. A Inglaterra do século XV usava um «Jesus Psalter», composto por Richard Whytfor, que compreende uma série de petições, das quais, cada uma inicia pela tríplice menção ao Nome sagrado que ainda está em uso.

O grande propagador da devoção do Nome de Jesus, durante a Baixa Idade Média, foi São Bernardino de Sena (1380-1444). Recomendava levar tabuinhas nas quais estava escrito o símbolo JHS. São João de Capistrano, discípulo de Bernardino, era também um propagador fervoroso da devoção do Nome de Jesus. Ambos os santos pertenciam à família religiosa de São Francisco de Assis. Sabe-se que o próprio Francisco enternecia-se com o Nome de Jesus. O culto do Santo Nome de Jesus se transformou em uma tradição franciscana. É muito significativo que uma versão italiana das “Floricillas” realizada em Trevi, em 1458, por um irmão menor da Ordem de São Bernardino, contenha um capítulo adicional sobre o testemunho da devoção que São Francisco tinha pelo Nome de Jesus.

Definitivamente, porém, foi Bernardo de Claraval, no século XII, o mais inspirado devoto do Nome de Jesus, sobretudo em seu sermão XV, sobre o «Cantar dos Cantares.» Comentando a assimilação do Nome de Jesus ao azeite derramado feita pelo Cantar, desenvolve a idéia de que «o Nome Sagrado, como o azeite, ilumina, unge.» Não é na luz desse Nome que Deus nos chamou à sua admirável luz? Recorda-nos os hesicastas: «O nome de Jesus não é somente uma luz, mas também alimento.» E, finalmente: «Se escreves, eu não gosto de teus escritos, a menos que eles lembrem o nome de Jesus. Se discutes ou pronuncias uma conferência, não gosto de tua palavra, a menos que ressoe nelas o Nome de Jesus. Pois Jesus é mel na boca, melodia para o ouvido, alegria para o coração... Porém, o Nome de Jesus é também um remédio. Alguém de nós está triste? Que Jesus chegue ao seu coração e, dali, Ele brote na sua boca ... Alguém cai em crime? Se invoca o nome mesmo da vida, não respirará ao mesmo tempo o ar da vida?»

Estas passagens contém a mais profunda Teologia sobre o Nome Sagrado de Jesus.

Edição: Pe. André Sperandio, hieromonge